segunda-feira, 21 de julho de 2014

RAZÃO DOS MISTÉRIOS





Sendo a fé a aspiração ao desconhecido, o objeto da fé é absoluta e necessariamente o mistério.
Para formular suas aspirações, a fé é forçada a emprestar do conhecido aspirações e imagens. Mas ela especializa o emprego dessas formas ao reuni-las de uma maneira impossível na ordem conhecida. Tal é a profunda razão do aparente absurdo do simbolismo. Demos um exemplo: Se a fé dizia que Deus é impessoal, poder-se-ia concluir daí que Deus é apenas uma palavra ou, no máximo, uma coisa. Se ela dizia que Deus é uma pessoa, o infinito inteligente seria representado sob a forma necessariamente limitada de um indivíduo. Ela diz Deus é um em três pessoas para exprimir que se concebe em Deus a unidade e o número. A fórmula do mistério exclui necessariamente a própria inteligência dessa fórmula, na medida em que empresta do Verbo coisas conhecidas, pois se fosse
compreendida exprimiria o conhecido e não o desconhecido. Pertenceria, então, à ciência e não mais à religião, isto é, à fé. O objeto da fé é um problema de matemática onde o x escapa aos procedimentos de nossa álgebra. As matemáticas absolutas provam somente a necessidade e, por conseguinte, a existência desse conhecido representado pelo x intraduzível. Ora, por mais que a ciência avance em seu progresso indefinido, mas sempre relativamente finito, nunca encontrará na língua do finito a expressão completa do infinito. O mistério é, portanto, eterno. Fazer entrar na lógica do conhecido os termos de uma profissão de fé é fazê-los sair da fé que tem por bases positivas o ilogismo, isto é, a impossibilidade de explicar logicamente o desconhecido.
Para os israelitas, Deus está separado da humanidade, não vive nas criaturas, é um egoísmo infinito. Para os muçulmanos, Deus é uma palavra diante da qual nos prosternamos sobre a fé de Maomé.
Para os cristãos, Deus revelou-se na humanidade, prova-se pela caridade, reina pela ordem que constitui a hierarquia. A hierarquia é guardiã do dogma, cuja letra e cujo espírito quer que respeitemos. Os sectários que, em nome de sua razão, ou melhor, de sua desrazão individual, tocaram o dogma, perderam, por esse mesmo fato, o espírito de caridade, excomungaram a si próprios. O dogma católico, isto é, universal, merece esse belo nome resumindo todas as aspirações religiosas do mundo; ele afirma a unidade de Deus com Moisés e Maomé, reconhece em si a trindade infinita da geração eterna com Zoroastro, Hermes e Platão, concilia com o Verbo único de São João os números vivos de Pitágoras, eis o que a ciência e a razão podem constatar. É portanto diante da própria razão e diante da ciência o dogma mais perfeito, isto é, o mais perfeito que alguma vez se produziu no mundo.
Que a ciência e a razão nos concedam isso, não lhes pediremos mais nada. Substituir o despotismo legítimo da lei pelo arbitrário humano, pôr, em outras palavras, a tirania no lugar da autoridade é obra de todos os protestantismos e de todas as democracias. O que os homens chamam de liberdade é a sanção da autoridade ilegítima ou, antes, a ficção do poder não sancionado pela autoridade.
João Calvino protestava contra as fogueiras de Roma para se dar o direito de queimar Miguel Servet. Todo povo que se libertou de um Carlos I ou de um Luís XVI submeteu-se a um Robespierre ou a um Cromwel, e existe um antipapa mais ou menos absurdo por trás de todos os protestos contra o papado legítimo.
A divindade de Jesus Cristo só existe na Igreja católica, para a qual ele transmite hierarquicamente sua vida e seus poderes divinos. Essa divindade é sacerdotal e real por comunhão, mas fora dessa comunhão toda afirmação da divindade de Jesus Cristo é idolátrica, porque Jesus Cristo não poderia.
Pouco importa à verdade católica o número dos protestantes.

Se todos homens fossem cegos, essa seria uma razão para negar a existência do sol?
A razão, protestando contra o dogma, prova suficientemente que não o inventou, mas é forçada a admirar a moral que resulta desse dogma. Ora, se a moral é uma luz, é preciso que o dogma seja um sol, a claridade não vem das trevas. Entre os abismos do politeísmo e do deísmo absurdo e limitado, só há um meio possível: o mistério da santíssima trindade. Entre o ateísmo especulativo e o antropomorfismo só há um meio possível: o mistério da encarnação. Entre a fatalidade imoral e a responsabilidade draconiana que decidiria pela danação de todos os seres, só há um meio possível: o mistério da redenção. A trindade é a fé. A encarnação é a esperança.
A redenção é a caridade. A trindade é a hierarquia. A encarnação é a autoridade divina da Igreja. A redenção é o sacerdócio único, infalível, indefectível e católico. Somente a Igreja católica possui um dogma invariável e encontra-se por sua própria constituição na impossibilidade de corromper a moral; ela não inova, explica. Assim, por exemplo, o dogma da imaculada concepção não é novo, estava inteiramente contido no Théotokon do concílio de Éfeso, e o Théotokon é uma consequência rigorosa do dogma católico da encarnação. Da mesma forma, a Igreja católica não faz excomunhões, ela as declara e só ela as pode declarar, porque é a única guardiã da unidade. Fora da barca de Pedro, só há o abismo. Os protestantes assemelham-se às pessoas que, cansadas da arfagem, jogar-se-iam na água para evitar o enjôo. E da catolicidade, tal qual é constituída na Igreja católica, que é preciso dizer o que Voltaire disse de Deus com tanta ousadia.
Se não existisse, seria preciso inventá-la. Mas, se um homem fosse capaz de inventar o espírito de caridade, teria também inventado Deus. A caridade não se inventa, revela-se por suas obras, e é então que se pode gritar com o Salvador do mundo: Felizes os que têm o coração puro, pois verão a Deus! Entender o espírito de caridade é ter a inteligência de todos os mistérios.

ELIPHAS LEVI – “A CHAVE DOS GRANDES MISTÉRIOS”

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