...Mas,
dias depois, um acontecimento inesperado transfigurou Guiomar e encheu-lhe os olhos
de cobiça e avidez ante a fabulosa descoberta; em apenas uma hora, depois de
Hortência recostar-se na parede de um muro arruinado, fatigada de suas
andanças, dezenas de pessoas condoídas daquele quadro burlesco, despejavam
dinheiro, enfeites e até adereços de bom valor no regaço da infeliz. Era um
acontecimento inédito no lugarejo pobre onde viviam. Lá, ambas mal conseguiam
adquirir os meios para se alimentarem, pois nos últimos dias aceitavam roupas e
auxílios dos conhecidos mais generosos. À noite, Guiomar contou a féria e ficou
perturbada. Ali estava uma pródiga fonte de renda para si e a possibilidade de amealhar
dinheiro fácil, cabendo-lhe Unicamente a tarefa de custodiar a irmã aleijada.
No
princípio, tratou Hortência com fingida ternura e afabilidade, velando por sua saúde
e bem-estar, mas, decorridos alguns dias, o seu espírito mercenário e
calculista passou a explorar tôdas as circunstâncias favoráveis na especulação
da desgraçada irmã. Percebendo que o aspecto melhor de Hortência, também lhe
reduzia a féria diária, Guiomar negou-lhe os mínimos recursos de higiene e
bem-estar, cuidando propositadamente de lhe dar um ar lúgubre, grotesco e
trágico! Empurrava Hortência para os lugares de maior afluência de pessoas.
Fazia-a levantar de madrugada e impeliaa pela rua escurecida a fim de apanhar o
primeiro transeunte; e, altas horas da noite, ainda a sustinha nos pontos estratégicos
de boa renda e muita gente. Obsidiada pela mórbida especulação sobre a
deformidade da irmã, Guiomar às vezes transportava Hortência de automóvel, de
um canto para outro, a fim de apanhar festas de igreja, saída tumultuosa dos cinemas
ou término das novenas bem frequentadas. Largava-a quase aos arrastos na porta dos
templos repletos de fiéis, ou lhe apurava o trote largo pelas ruas da cidade,
na precipitação de alcançar a chegada de trens na gare ferroviária.
Hortência
atingira os trinta anos e estava horrenda. O crânio alongado com ralos cabelos
eriçados, o rosto terroso e comprido, formavam um esboço humano mal acabado, esculpido
por grosseiro artista. Também perdera a maioria dos dentes, e, os que restavam eram
pontudos, acentuando-lhe o aspecto animalesco.
Algumas
criaturas de coração magnânimo compraram-lhe um carrinho de rodas de borracha
facilmente movido à mão. Guiomar ficara furiosa com essa providência
caritativa, que logo reduziu grande parte das esmolas; e, certa noite escura,
enquanto Hortência dormia, ela largou o carrinho no trilho da estrada de ferro
e um trem o esfacelou. Dali
por
diante pôs-se a vigiar Hortência como um felino vigia sua presa, impedindo-a de
contacto com qualquer outra criatura. Evitava as proximidades de associações beneficentes,
só lhe permitindo o direito de pedir uma esmola pelo amor de Deus! Toda a
contextura espiritual primária de Guiomar veio à tona por fôrça da ganância e
sovinice. Ela batia em Hortência, quando a féria era magra. verberando-lhe a
moleza no pedir; e deixava-a propositadamente sem comida até conseguir determinada
importância. Explorava-lhe todas as possibilidades do ganho fácil, verificando
que a própria fome melhorava a receita de Hortência.
Eis
que, certa organização espírita, condoendo-se da situação pungente de Hortência,
promoveu uma subscrição entre os associados e conseguiu pecúlio suficiente para
interná-la numa instituição hospitalar adequada à sua enfermidade. Em seguida, entregou
certa importância em dinheiro para Guiomar adquirir roupas e utensílios necessários
à irmã. Mas para surpresa de todos, Guiomar desapareceu com o dinheiro subscrito
e deixando a irmã na mais extrema miséria. Mais tarde soube-se de toda a verdade;
Guiomar retirara farto pecúlio da Caixa Econômica e sumira-se para lugar ignorado
em companhia de conhecido vigarista da Capital.
Passaram-se
os anos. Um dia Hortência desapareceu da instituição em que fora acolhida.
Algum tempo depois, no lugarejo de Taperibá, o dia estava quente e abafadiço, o
ar estagnado. Os próprios pássaros refugiavam-se nos ramos imóveis dos
arvoredos. Entre os tufos de capim amarelecidos e pintalgados pela poeira
vermelha, que subia da estrada principal, existia um caminho estreito e sinuoso
entre os arbustos e sob os arvoredos copados.
Ao longe, na estrada, trotava uma carruagem deixando uma nuvem cor de tijolo à retaguarda.
No riacho, debaixo de uma ponte, algumas mulheres lavavam roupas nas tábuas lisas,
depois de as esfregarem com sabão de cinzas. Algumas delas fumavam cigarros de palha,
espalhando no ar o cheiro acre do fumo caboclo; outras tagarelavam e riam numa prodigalidade
de gestos próprios do mulherio de cortiço. Entretidas na faina laboriosa e como
não eram dotadas com a "faculdade de vidência", (1) elas não podiam
perceber a cena insólita que se passava justamente sobre a ponte onde se abrigavam
do sol causticante. Ali, sem se preocupar com o calor estorricante,
encontravam-se três homens de vestes translúcidas, envoltos por uma
luminosidade suave e um "lusco-fusco" lilás safirino. Jamais as
lavadeiras poderiam ouvir-lhes o diálogo, pois eram, realmente, espíritos em
alguma tarefa importante naquela zona.
—
Creio estarmos bem orientados! — exclamou o mais idoso entre eles, um senhor de
aspecto agradável, tipo latino, mas envergando uma túnica de seda branca como usavam
os antigos gregos, a qual lhe caía harmoniosamente até um pouco abaixo da cintura.
Apontando para o atalho sinuoso entre os arbustos, ele acrescentou — A nossa cliente
deve agonizar nessa direção! — E sorriu, com certo ar travesso, mas cordial, ao
mencionar a palavra "cliente".
Os
outros dois companheiros trajavam um costume branquíssimo lembrando a figura de
enfermeiros. Cada um deles segurava um pequeno aparelho prateado que refulgia
sob as cores dum verde-suave respingado de lilás emanado das próprias auras. Em
seguida, eles se puseram a caminhar, lentamente, alcançando o caminho estreito.
Depois de alguns minutos de caminhada num cordial entretenimento espiritual,
chegaram defronte a uma cabana arruinada, que só por um milagre estava de pé.
Foram recebidos por uma mulher de meia-idade, envolta num halo cinzento e sem
claridade definida, cuja fisionomia rejubilou-se ao comprovar a chegada dos
espíritos.
—
Graças a Deus! — disse ela, pondo a mão no peito e apontando para dentro do casebre.
— Ela está sofrendo demais e não pode se libertar sem o socorro
desencarnatório.
Eis,
porque, rogo-lhes desculpas pelo meu apelo aflito. Os três espíritos penetraram
no casebre e não puderam ocultar um choque vibratório desagradável, que os
atingiu causado pelos fluidos densos e mortificantes, e pela multiplicidade de
miasmas, gérmens e bacilos psíquicos ativados no entretenimento de sua vida inferior.
Num canto, atirada sobre uma enxerga de trapos e capim infecto, Hortência, a mulher
simiesca e repulsiva, estertorava em tormentosa agonia, com os olhos
esbugalhados para o teto esburacado da cabana. Não havia qualquer semelhança
com algum ser humano, mas apenas uma caricatura que fosse esculpida no tronco
de uma árvore carcomida. O espírito mais idoso curvou-se sobre ela, num gesto
de profunda comiseração e ao mesmo tempo de pesquisa, como o técnico que
procura alguma falha em peça valiosa. Em seguida, ele esclareceu, erguendo-se:
—
Realmente, o cordão umbilical rompeu-se e o chacra laríngeo está se apagando
pela evasão do éter-físico, o que se comprova pela perda da voz e a dispnéia na
tentativa de falar. Já foi superada a fase instintiva e o nosso trabalho agora
resume-se na região mental, onde se aninha a última onda de vida carnal!
Os
dois jovens postaram-se ao lado de Hortência e conforme as instruções do seu mentor,
moviam os seus aparelhos em complicados processos a despedir clarões de um alaranjado
brilhante e às vezes matizado de um prateado fulgurante. Dali a pouco via-se perfeitamente
o duplo 'astral de Hortência projetado uns três palmos acima do seu corpo físico,
mas ainda ligado por um cordão prateado, (2) que resplandecia como um fio elétrico
incandescente. Alguns minutos depois, o espírito mais idoso apanhou de um estojo
castanho claro, uma espécie de tesourão pequeno de podar arvoredos, e ligou-o
numa caixa presa à cintura de um dos jovens companheiros, algo parecida com um
pequeno transformador. Ato contínuo, despediram-se milhares de fagulhas
serpenteantes do referido tesourão, num tom azul-aço, e dali a pouco pendia da
região bulbar do perispírito de Hortência o cordão prateado, de cuja ponta
balouçante fluía o "tônus vital", em clarões intermitentes. O
venerável espírito voltou-se para os companheiros e para a mulher, que então se
achava amparada por outro espírito deser carnado, de aspecto modesto e humilde,
dizendo lhes:
— Irmãos
Margarida e João Batista, entrego-lhes o espírito de Hortência, que foi sua
filha na última existência terrena, e deixo a cargo de vocês a assistência que
ela poderá necessitar. Almejo a todos compreensível vivência espiritual e
eficiente programa redentor para o futuro.
Retornaram
pelo mesmo caminho sinuoso entre os tufos de capim avermelhado, enquanto o
mentor comentava:
— O
problema cármico na Terra ainda é complicado e bem tormentoso! No entanto,
quando o espírito aceita espontaneamente a prova redentora e a cumpre com resignação,
conformidade e estoicismo, é sempre compensador ajudá-lo no seu transe final a
se desvencilhar dos últimos grilhões da carne! Hortência, a irmã que atendemos,
apesar do orgulho e ferocidade do passado, aceitou e cumpriu resignada a prova
trágica e dolorosa, que impôs a si mesma para a sua mais breve retificação
espiritual.
— Irmão
Demócrito, — indagou um dos jovens espíritos — qual foi a causa que gerou um
destino material tão horripilante para essa irmã?
A
simpática entidade, depois de um momento de abstração, explicou:
— Hortência
foi no século passado dona Francelina, esposa de abastado fazendeiro paulista.
Mulher cruel e tirânica, que administrava pessoalmente os bens do marido, o
qual consumia a existência e fortuna no bulício de Paris, sustentando vaidosa e
fútil amante. Dona Francelina não fôra nascida mulher para o lar, pois, se fosse
homem, seria um feroz sargento de quartel. Era espírito de comportamento
masculino, resoluto e despótico, vigiando tiranicamente a vida e as negaças dos
escravos da senzala. Ela sabia extrair o máximo do trabalho cativo no eito.
Escravo doente, defeituoso ou exaurido, era vendido de modo inclemente para
outros fazendeiros menos privilegiados.
Não
vacilava em separar os filhos dos pais. Não escondia sua desusada volúpia,
quando apanhando escravos em falta grave, podia se vingar deles separando-os
dos familiares.
— Demócrito
fez uma pausa, como a coordenar lembranças:
—
Mas a vingança mais impiedosa e sádica de dona Francelina, consistia em obrigar
a escrava ou escravo faltosos a ficarem de quatro, o dia todo, com as mãos no
chão, só permitindo-lhe alimentar com a boca, como fazem os cães! Qualquer
gesto ou tentativa de burlar o castigo e livrar-se da posição incômoda e dolorosa,
ela mandava vergastar. E enquanto os feitores castigavam o lombo dos infelizes
cativos, ela gritava, num tom de voz varonil e no sotaque arrastado de mulher
nortista:
—
Não se levanta! ... Não se levanta! ...
Atingida
a ponte de cimento, Demócrito arrematou:
_Sob
a lei de que a "semeadura é livre, mas a colheita é obrigatória",
dona Francelina retornou à Terra, na localidade de Taperibá, vivendo a figura
da infeliz Hortência e nas condições dramáticas que vocês puderam verificar,
modelando durante anos na sua deformidade insuperável e posição quadrúmana, a
mesma configuração que no passado ela impunha impiedosamente a seus infelizes
escravos. Considerando-se que o "amor une" e o "ódio
imanta", as almas entre si, junto de Hortência nasceu-lhe como irmã, Guiomar,
a escrava mais pérfida da fazenda, e da qual dona Francelina mais se desforrava
pela chibata. O esposo, boêmio, irresponsável e sua amante parisiense, também
se aliaram à prova de Hortência na carne, vivendo as figuras de João Batista e
Marciana, seus pais, a quem ainda a pouco entregamos a filha.
Enquanto
os dois espíritos moços refletiam sobre a trama cármica que reajusta a entidade
faltosa na busca da felicidade perdida, Demócrito, num gesto de sincera
ternura, acrescentou:
—
Que eles sejam felizes; mas, em face do seu primarismo espiritual, ainda precisam
de muitos séculos para alcançar a ventura angélica!
(1)
Vidência, faculdade própria dos médiuns que podem enxergar os espíritos desencarnados.
Do
livro: “Semeando E Colhendo” Atanagildo/Hercílio Maes – Editora do
Conhecimento.
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