—
Paulo! Chame a ambulância! Ligeiro, homem! Matias está quebrado, lá embaixo!
Os
operários desciam dos andaimes, apressados, pela escada improvisada de madeira tosca;
os mais afoitos escorregavam pelas cordas. Sobre retalhos de sarrafos, ripas e
tábuas de pinho, jazia um homem de bruços, imóvel, gemendo, sem que alguém se
animasse de
tocá-lo, tais eram os gritos lancinantes que soltava ao tentarem socorrê-lo. Vinte
minutos depois se fez ouvir o uivo estridente da ambulância correndo amalucadamente
pelas ruas de S. Paulo, aproximando-se do "local do acidente. Chegou e partiu
dentro de alguns minutos levando a vítima, na qual o médico responsável pela tarefa
constatou várias e dolorosas fraturas ósseas.
—
Não sei o que há com esse homem!
— dizia "seu Joaquim", o feitor, quando prestava declarações no
inquérito formal da companhia seguradora. Essa é a sétima vez que Matias se
acidenta em nossa firma, durante onze anos de serviço. Até parece mandinga,
pois ele se quebra todos nos ossos. — E numa sugestão desconsolada, aduziu — Creio
ser tempo dele se aposentar!
Matias
não podia ser exonerado sem o consentimento do "Sindicato de Construções Civis",
porquanto era empregado estável, com mais de dez anos de trabalho na mesma
firma. Realmente,
em onze anos de trabalho acidentara-se sete vezes, caindo de andaimes, de
escadas e do caminhão que servia para o transporte de materiais. Então ele
ficava engessado algumas semanas, no hospital. Houve casos em que os médicos
ajustaram os ossos de modo deficiente, e o infeliz teve de ser quebrado outra
vez, para retornar à forma normal. Haviam-no apelidado de "quebra
ossos", e a quantidade de chapas radiográficas que ele possuía era
suficiente para comprovar uma das mais tristes histórias de sofrimento e azar!
Vinte
dias depois desse último acidente, Matias obtinha alta do hospital e se apresentava
novamente ao serviço. O capataz olhou-o, de fisionomia azeda e desconsolada.
-Homem
de Deus! Por que você não se aposenta duma vez? Que adianta trabalhar assim, se
vive mais no hospital, todo quebrado?
— Que
é que vou fazer, seu Joaquim? Tenho mulher e cinco filhos. O que o instituto
paga não dá nem "pro" sustento, quanto mais "pro" futuro? Encolheu
os ombros, desacorçoado:
— Pode
ser sina, não digo que não; mas se Deus quer assim, que vou fazer? Um dia isso
termina, nem que seja mesmo com a morte!
— Qual,
homem! — atalhou Joaquim, o capataz. — Desse jeito você ainda vira farinha de
ossos!
Joaquim,
apesar de enérgico e rústico, era dessas almas simples e laboriosas, malgrado enfrentar
os tipos mais ordinários em sua função espinhosa de feitor. Tirou o chapéu e
passou a mão pelos cabelos, numa arrumação pensativa; em seguida, decidido, deu
um leve empurrão em Matias, como a disfarçar a sua boa intenção:
— Vai,
homem! Você daqui por diante fica na guarita, apontando os empregados e
controlando os caminhões de carga. — Abrindo-se num sorriso satisfeito, arrematou,
sem maldade: — Acho que do chão você não passa!
Matias
assumiu a nova tarefa, com o desânimo a lhe minar a alma, e parecia ouvir uma
voz íntima predizendo o fatalismo incessante de novas dores e quebradeiras ósseas.
Sentia-se vencido pela má sorte; batido pelo cansaço que o deixava
desencorajado para o futuro. No entanto, nenhuma criatura reagia tão vigorosamente
na reparação dos ossos fraturados. O organismo de Matias zombava de suas
angústias, parecendo ter pressa em lhe reconstituir os ossos, a ponto de
algumas vezes corrigir os enganos médicos e acertando-lhe a conformação
anatômica. Depois de uma fratura reparável somente em dois ou três meses, bastavam
semanas para ele se recompor. Os médicos do instituto, surpresos, examinavam lhe
a ossatura recuperada, as suturas coerentes e a rapidez da cura. E o laudo,
portanto, era sempre o mesmo: "Apto para o serviço!"
De
há muito tempo, Matias sonhava com a aposentadoria por invalidez, e depois complementaria
o orçamento familiar fazendo alguns "bicos". Entretanto, sentia-se dominado
por um complexo; naquela existência malvada já temia andar pelas ruas, desviando
cascas de banana, contornando o asfalto úmido. Custava atravessar uma rua movimentada.
Não subia mais escadas. Não se arriscava ao mais suave degrau. Não aceitava qualquer
convite para uma passagem de caminhão, Inutilmente, tentava se libertar do gênio
mau e sarcástico, que parecia rir-se ao predizer no âmago do seu espírito, a
sina dolorosa de ser esmigalhado até o último osso! Graças a "seu" Joaquim,
podia ficar protegido, junto ao chão, como apontador e porteiro da construtora,
longe dos andaimes traiçoeiros, das cordas fracas e dos degraus podres que se
desmantelavam à sua passagem.
— Acho
que do chão não passa! — dissera seu Joaquim, consolador.
A
sua infância fora bem azarada; a velha Maria Turquesa cansara de arrumar-lhe os
ossos dos braços, das pernas, e, certa vez, precisou consertar-lhe o queixo
fraturado numa queda do muro.
— Matias!
— clamou "seu" Joaquim. — Abra o portão dos fundos; o caminhão vai
entrar por lá! Avia-te, homem!
Era
o terceiro mês que ele servia como apontador de operários e fiscal das cargas trazidas
para o almoxarifado da construção. Sentia-se bem, muito bem; havia engordado
cinco quilos naquela vida tranquila . Apanhou o molho de chaves e desceu para
os fundos do terreno, onde terminava o esqueleto da construção. Abriu o portão
e calçou as duas folhas pesadas de madeira; fez sinal ao chofer e indicou-lhe o
caminho para levar a carga de ferros, cimento e quase uma tonelada de cano
galvanizado para a rede de água e esgoto. O pesado veículo roncou forte e o
motorista pisou firme no acelerador, para vencer o declive da calçada e dobrar,
rápido, em direção ao almoxarifado, cujo terreno cedia facilmente. O ar desandou a gasolina e os pneus estalaram no cascalho solto. Um golpe violento
de direção, uma derrapagem e quando o motor amainou foi que ouviram os ais de
Matias, atirado numa poça de sangue junto ao pilar do primeiro pavimento. O
feixe de canos galvanizados, que se sobressaia do caminhão, apanhara Matias na
curva da entrada, e o lançara a mais de dez metros de distância, como
arremessado por certeira catapulta...
Do livro: “Semeando e
Colhendo” Atanagildo/Hercilio Maes – Editora do Conhecimento.
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