domingo, 25 de maio de 2014

A FÉ, A CIÊNCIA, A RAZÃO.




A CIÊNCIA — Nunca me fareis acreditar na existência de Deus.
A FÉ — Não tendes o privilégio de creditar, mas nunca me provareis que Deus não existe.
A CIÊNCIA — Para vo-lo provar, é preciso que, em primeiro lugar, eu saiba o que é Deus.
A FÉ — Não o sabereis nunca. Se soubésseis, poderíeis ensinar mo, e, quando eu o soubesse, não mais acreditaria nele.
A CIÊNCIA — Acreditais, então, sem saber em que estais acreditando?
A FÉ — Ali! não joguemos com as palavras. Sois vós quem não sabeis em que eu acredito,
precisamente porque vós não o sabeis. Tendes a pretensão de ser infinita? Não sois interrompida a cada instante pelo mistério? O mistério é para vós uma ignorância que reduziria ao nada o finito de vosso saber, se eu não o iluminasse com minhas ardentes inspirações, e quando dizeis: Eu não sei mais, eu gritaria: Quanto a mim, começo a acreditar.
A CIÊNCIA — Mas vossas aspirações e seu objeto são e só podem ser hipóteses para mim.
A FÉ — Sem dúvida, mas são certezas para mim, uma vez que sem essas hipóteses eu duvidaria até mesmo de vossas certezas.
A CIÊNCIA — Mas, se começais onde eu paro, começais temerariamente muito cedo. Meus progressos atestam que eu ando sempre.
A FÉ — Que importam os vossos progressos, se ando sempre na vossa frente?
A CIÊNCIA — Tu, andar! sonhadora da eternidade, desdenhaste demais a terra, teus pés estão dormentes.
A FÉ — Sou carregada por meus filhos! A CIÊNCIA — São cegos que carregam um outro, cuidado com os precipícios!
A FÉ —Não, meus filhos não são cegos, muito pelo contrário, desfrutam de dupla visão, vêem por teus olhos o que tu podes demonstrar para eles na terra e contemplam, pelos meus, o que lhes mostro no céu.
A CIÊNCIA — O que a razão pensa disso?
A RAZÃO — Penso, ó caras mestras, que poderíeis realizar um apólogo tocante, o do paralítico e o do cego. A ciência censura a fé por não saber andar na terra, e a fé diz que a ciência não vê nada no céu das aspirações e da eternidade. Ao invés de brigarem, ciência e fé deveriam unir-se: que a ciência carregue a fé e a fé console a ciência, ensinando-lhe esperar e amar. A CIÊNCIA — Essa idéia é bela, mas é uma utopia. A fé dir-me-á absurdos, e eu quero andar sem ela. A FÉ — O que é que chamais de absurdos?
A CIÊNCIA — Chamo de absurdos as proposições contrárias às minhas demonstrações, como, por exemplo, que três são um, que um Deus fez-se homem, isto é, que o infinito fez-se finito. Que o Eterno morreu, que Deus puniu seu filho inocente pelo pecado dos homens culpados... A FÉ — Não digas mais nada. Externadas por ti, essas proposições são, de fato, absurdos. Por acaso sabes o que é o número em Deus, tu que não conheces Deus? És capaz de raciocinar sobre as operações do desconhecido? És capaz de entender os mistérios da caridade? Devo ser sempre absurda para ti, pois se entendesses minhas afirmações, elas seriam absorvidas por teus teoremas; eu seria tu, e tu serias eu, para dizer melhor, eu não existiria mais, e a razão, em presença do infinito, deter-se-ia sempre
cegada por tuas dúvidas tão infinitas quanto o espaço.
A CIÊNCIA — Pelo menos, nunca usurpes minha autoridade, não me desmintas em meus domínios.
A FÉ — Nunca o fiz, e não posso nunca o fazer.
A CIÊNCIA —Assim, nunca acreditaste, por exemplo, que uma virgem possa ser mãe sem deixar de ser virgem, e isso na ordem física, natural e positiva, a despeito de todas as leis da natureza; não afirmas que um pedaço de pão é não somente um Deus mas um corpo humano verdadeiro, com ossos e veias, órgãos, sangue, de maneira que fazes de teus filhos que comem esse pão um povinho antropófago.
A FÉ — Não é cristão quem não se revolte com o que acabaste de dizer. Isso prova o suficiente que eles não entendem meus ensinamentos dessa maneira positiva e grosseira. O sobrenatural que afirmo está acima da natureza e não poderia, por conseguinte, opor-se a ela, as palavras de fé só são compreendidas pela fé; nada que, em as repetindo, a ciência desnature. Sirvo-me de tuas palavras, porque não tenho outras; mas uma vez que achas meus discursos absurdos, deves concluir que dou a  essas mesmas palavras um significado que te escapa. O Salvador, ao revelar o dogma da presença real, não disse: A carne aqui não tem nenhuma serventia, minhas palavras são espírito e vida? Não te apresento o mistério da encarnação como um fenômeno de anatomia nem o da transubstanciação como uma manifestação química. Com que direito gritarias ao absurdo? Eu não raciocino sobre nada do que conheceis; com que direito dirias que eu disparato?
A CIÊNCIA —Começo a te compreender, ou melhor, vejo que nunca te compreenderei. Nesse caso, continuemos separadas, nunca precisarei de ti.
A FÉ — Sou menos orgulhosa e reconheço que me podes ser útil. Talvez também sem mim estarias bem triste e bem desesperada, e não quero separar-me de ti, a menos que a razão o consinta.

A RAZÃO — Não façais isso. Sou necessária a ambas. E eu, que faria sem vós? Preciso saber e crer para ser justa. Mas nunca devo confundir o que sei com o que acredito. Saber não é mais acreditar, acreditar não é saber ainda. O objeto da ciência é o conhecido, a fé não se ocupa dele e deixa-o inteiramente à ciência. O objeto da fé é o desconhecido, a ciência pode buscá-lo, mas não defini-lo; é portanto forçada, pelo menos provisoriamente, a aceitar as definições da fé que lhe é até mesmo impossível de criticar. Somente se a ciência renuncia à fé, renuncia à esperança e ao amor, cuja existência e necessidade são, no entanto, tão evidentes para a ciência quanto para a fé. A fé, como fato psicológico, pertence ao domínio da ciência, e a ciência, como manifestação da luz de Deus na inteligência humana, pertence ao domínio da fé. A ciência e a fé devem, portanto, aceitar-se, respeitarse mutuamente, até mesmo sustentar-se e socorrer-se nas necessidades, mas sem nunca usurpar uma à outra. O meio de as unir é nunca as confundir. Mas não deve haver contradição entre elas, pois servindo-se das mesmas palavras não falam a mesma língua. 
A FÉ —Pois bem! irmã ciência, o que
dizeis disso?
A CIÊNCIA — Digo que estávamos separadas por um deplorável mal-entendido e que, doravante, podemos andar juntas. Mas a qual de seus símbolos vais-me associar? Serei judia, católica, muçulmana ou protestante?
A FÉ — Continuarás sendo a ciência e serás universal.
A CIÊNCIA — Ou seja, católica, se bem compreendo. Mas o que devo pensar das diferentes religiões?
A FÉ — Julga-as por suas obras. Procure a caridade verdadeira e, quando a tiver encontrado, pergunta-lhe a que culto pertence.
A CIÊNCIA — Não será certamente ao dos inquisidores e dos carrascos da Noite de São
Bartolomeu.
A FÉ — É ao de São João, o Esmoler, de São Francisco de Sales, de São Vicente de Paulo, de Fenelon e de tantos outros.
A CIÊNCIA — Reconheceis que, se a religião produziu algum bem, fez também muito mal.
A FÉ — Quando se mata em nome do Deus que disse: Não matarás, quando se persegue em nome daquele que quer que se perdoe os inimigos, quando se propaga trevas em nome daquele que não quer que se oculte a luz, será justo atribuir o crime à própria lei que o condena? Dize, se quereis ser justa, que, apesar da religião, muito mal foi feito na terra. Mas, também, quantas virtudes ela fez nascer,
quantos devotamentos e sacrifícios ignorados? Contaste estes nobres corações de ambos os sexos que renunciaram a todas as alegrias para se pôr ao serviço de todas as dores? Essas obras devotadas ao trabalho e à oração que passaram fazendo o bem? Quem pois fundou asilos para os órfãos e os idosos, hospícios para os doentes, retiros para o arrependimento? Essas instituições tão gloriosas quanto modestas são obras reais de que os anais da Igreja estão cheios; as guerras de religião e os suplícios dos sectários pertencem à política dos séculos bárbaros. Os sectários, aliás, eram eles próprios assassinos. Esquecestes a fogueira de Miguel Servet e o massacre de nossos padres renovado ainda em nome da humanidade e da razão pelos revolucionários inimigos da inquisição e da Noite de São Bartolomeu? Os homens são sempre cruéis, quando esquecem a religião que os abençoa e perdoa.
A CIÊNCIA — Ó fé, perdoa-me então se não posso acreditar, mas sei agora por que és crente. Respeito tuas esperanças e partilho de teus desejos. Mas é pesquisando que eu encontro e é preciso que eu duvide para pesquisar.
A RAZÃO — Trabalha e procura, então, ó ciência, mas respeita os oráculos da fé. Quando tua dúvida deixar uma lacuna no ensinamento universal, permite  à fé preenchê-la. Andai distintas uma da outra, mas apoiadas uma na outra, e nunca vos separeis.
Eliphas Lévi – “A Chave Dos Grandes Mistérios”

Nenhum comentário:

Postar um comentário

Observação: somente um membro deste blog pode postar um comentário.