Eram
duas horas da madrugada. A noite estava quente e abafadiça. As mariposas e os
besouros dançavam alvoroçados ao redor das lâmpadas elétricas da praça. Os
bancos estavam vazios e ouvia-se os grunhidos de algum bêbedo tentando
encontrar o rumo de casa. Às vezes, o silêncio da noite era quebrado
repentinamente pelo barulho dos carros de padeiros fazendo bulha nas pedras da
rua, ou pelo latido de algum cão notívago. Ali, junto ao meio fio, estacionavam
dois automóveis de aluguel. Os choferes dormiam, esparramados sobre os assentos
e gozando de rápido sono, enquanto não lhes apareciam fregueses.
Das
sombras saiu um vulto de mulher pequena que, em movimentos rápidos, esgueirou-se
por trás de um renque de cedros e pequenos arbustos da praça; atenta à qualquer
movimento exterior, ela evitava mostrar-se à luz das lâmpadas. Movia-se aos
pulinhos, como os pássaros; surgia, de relance, recortando o seu vulto na
claridade difusa e depois era sumida pelas sebes e pelos arbustos compactos.
Súbito, parou, indecisa. Orientou-se no meio da escuridão, aproximou-se .com
passos cuidadosos, perto dos automóveis estacionados. Cautelosamente ela
se certificou de que os choferes dormiam. Em seguida, tomou de um embrulho, e,
num gesto furtivo e rápido, que mal lhe desenhou a silhueta sob a réstia de
luz, largou-o sobre o coletor de lixo, junto ao banco de cimento e sumiu-se
definitivamente tragada pela escuridão. Tudo continuou quieto como se nada
tivesse acontecido; mas a quietude logo foi quebrada por uma voz masculina e
vigorosa:
—
Olá, Waldemar! Acorda, homem! — O passageiro bateu fortemente no vidro da porta
do automóvel. O chofer' acordou-se, sonolento, esticou os braços num movimento
de aliviar a tensão do corpo e deu conta do que acontecia. Abriu, rápido, a
porta do veículo para o freguês notívago. Neste instante, ambos ouviram, ali
perto, um choro abafado, que os fez mover a cabeça, num gesto unânime de
surpresa em direção ao coletor de lixo.
— Ué!
— interveio o passageiro, desistindo de entrar no automóvel. — Ali há coisa!
O
chofer saiu do carro, rodeou-o, curvando-se sobre o embrulho deixado pela mulher
misteriosa no coletor de lixo. Livre dos panos que o oprimiam, o recém nascido
entrou num choro convulso e interminável.
— Ora;
mais essa? — exclamou o chofer, perplexo, erguendo o boné e coçando o cimo da
cabeça. Caminhou para o outro veículo e bateu forte na porta, arrancando o
colega do sono gostoso:
— Armando!
... Armando! Acorda, homem! Temos coisa por aqui!
— E
quando o companheiro achegou-se, ainda esfregando os olhos e mal acordado, mostrou-lhe
o bebê a berrar sobre o banco de cimento, e mofou, num tom chocarreiro:
— Olha
aí teu filho, homem! Eu bem que desconfiava!
— O
que?! — exclamou o outro, atarantado, enquanto o passageiro ria alto e
considerava depois:
— É
um ser humano, não é? Acho que devemos levá-lo à Polícia, para ela dar um jeito!
— E num gesto familiar. —A não ser que um de vocês queira adotá-lo!
— Eu?!
— fez o segundo chofer. — Mal dou conta das minhas cinco bocas em casa!
— Quanta
a mim sou solteiro. Não tenho jeito para ama-seca! — desculpou-se o primeiro.
Na
"Delegacia de Ordem Social", o suplente da noite tirou uma baforada
de fumo do cigarro, e sem qualquer emotividade, considerou:
— Naturalmente isso é de
alguma vagabunda. Elas enchem a barriga e chutam o filho para os outros
criarem! Isso é muito comum. Essa teve algum remorso ou escrúpulo, pois se renegou
o filho não o matou. E
depois de uma pausa, coçando a cabeça, aventou uma solução:
— Não
podemos obrigar uma sem-vergonha a criar os filhos. Quanto a isso nada posso fazer,
nem abrir um inquérito ou qualquer punição. Talvez esse diabo aí esteja com
fome. Não para de berrar. Olhe, vou dar a vocês uma recomendação para gente
minha conhecida, e que já tem me "quebrado uns galhos" como este! — E
apontando o enjeitado, indagou. —É menino ou menina?
— Menina!
— redarguiu o chofer.
O
suplente sentou-se, puxou da caneta e redigiu um rápido bilhete, entregando aos
choferes:
—
Levem isso à "Casa Madalena", dos espíritas, e digam à dona Lavínia
para recolher essa enjeitada até amanhã. Mais tarde, eu passo por lá e darei
uma solução definitiva. Contem como a acharam numa lata de lixo!
A
"Casa Madalena" era um edifício novo, amplo e de estilo moderno. Fruto
de doações generosas dos espíritas e destinada exclusivamente ao amparo das
meninas órfãs e enjeitadas, podia abrigar cinquenta crianças. Entretanto, ali
se internavam 65 meninas.
Malgrado
as alegações justas de dona Lavínia, mulher laboriosa e responsável pela vida cotidiana
da instituição, ela se viu obrigada 'a aceitar a menina, para não a deixar ao
relento e também atender ao suplente amigo e cooperador da casa.
Marilda,
assim escolheram o nome para a enjeitada, cresceu entre as demais meninas,
quase todas da mesma idade, pois a "Casa Madalena" fora fundada há
pouco tempo e amparava a primeira leva de órfãs abandonadas. Apesar dos
subsídios precários do governo, sempre de má vontade, para com as instituições
espíritas benfeitoras, e bastante atencioso e pródigo para as realizações do
Clero Católico, que lhe dá o apoio político, foi possível terminar a obra
filantrópica, graças aos donativos pródigos de alguns confrades magnânimos.
Felizmente,
a instituição possuía todas as condições necessárias para proporcionar às abrigadas
o conforto e o amparo desejável.
A
casa erguia-se no centro de florido jardim emoldurado por delicado tapete de grama
esverdescente, verdadeiro veludo vegetal. As roseiras, em grupos isolados,
estavam pensas de flores e coloriam o ambiente de matizes "bordeaux",
gema de ovo, branco, rosa quase lilás e um vermelho tijolo. Circundava todo o
edifício uma espaçosa varanda onde as meninas bordavam, estudavam ou
palestravam acomodadas em confortáveis poltronas e espreguiçadeiras. Aos
domingos ensolarados conduzidas pelo ônibus da própria instituição, elas desciam
à praia ou se rejubilavam em excursões aos lugares mais pitorescos. A
"Casa Madalena" lutava com falta de mentores adequados para o seu
generoso labor, como sói acontecer à maioria das instituições espíritas.
Lavínia, mulher abnegada e seu Morales, espírita
da velha guarda e bom caráter, mal podiam atender às necessidades físicas das internadas,
em número superior ao que fora previsto no programa filantrópico. Não lhes sobejava
tempo suficiente para cuidarem dos problemas emotivos e de esclarecimento espiritual;
tudo era feito às pressas e ambos se davam por felizes quando, à noite, podiam
orar convictos de haverem cumprido o seu dever.
Sem
dúvida, a magnanimidade dos espíritas havia contribuído para oferecer o bom e o
melhor às enjeitadas pelo mundo. A cozinha era até luxuosa com o chão de
mosaico sempre lustroso. As mesas de imbuia lavrada e tampos de mármore polido.
Os fogões a gás, sempre luzidos e limpos, decorados com panelas de pressão cintilantes.
Os talheres de alpaca e os pratos de porcelana fina garantiam a higiene desejável
na alimentação coletiva. As próprias cadeiras estofadas de gobelim,
proporcionavam agradável conforto durante às refeições. Os quartos eram limpos
e claros, acortinados de veludo e seda, em harmonia com os leitos guarnecidos
de colchões de molas, cobertos de lençóis alvíssimos e colchas rendilhadas sob
os macios travesseiros de espuma. Pequeninos tapetes com delicados desenhos floridos,
preservavam as meninas de um contato desagradável com o assoalho gélido nos meses
de inverno.
Sob
a direção inteligente dos diretores da "Casa Madalena", não se
despersonalizava as internas, coisa comum em instituições semelhantes. As meninas
trajavam de modo diferente, entre si, demonstrando o gosto individual até no
corte do cabelo. Quando saíam à rua moviam-se jubilosas, em grupos afins, rindo
venturosas. Não manifestavam aquele aspecto de rebanho de outras organizações
religiosas ou de assistência pública, que passam pelas ruas em compridas
procissões, na fusão descolorida do mesmo uniforme, sapatos, meias, gorros e
tipo de cabelos. Os próprios quartos eram diferentes e permitiam um certo toque
pessoal; variavam
o estilo do abajur, o colorido dos tapetes e o bordado das colchas! Os salões eram
amplos e bem decorados em estilo moderno. O principal divertimento era o rádio,
mas alguns anos depois a direção conseguira um aparelho de cinematografia
projetando filmes como distração. Últimamente, elas haviam sido presenteadas
com excelente aparelho de televisão.
Marilda
crescia neste ambiente amigo, confortável e prazenteiro. Entretanto, não demorou
a mostrar o temperamento obstinado, rebelde e desobediente, sempre inconformada
com a disciplina e as obrigações cotodianas. Dona Lavínia viu-se obrigada a lhe
fazer severas advertências, além das admoestações de "seu" Morales,
homem brusco, incisivo, justo e coerente.
Malgrado
as concessões afetivas e tratamento amistoso, e até ameaças de reclusão, Marilda
transformava-se dia a dia num problema sério e espinhoso para a "Casa
Madalena", porque o seu mau comportamento também semeava exemplos nocivos.
Ela desfazia, irritada, todo o bem que lhe proporcionavam, caso não lhe
permitissem agir discricionariamente.
Mal
iniciou a puberdade, ela se punha de rosto sombrio e amuada, quando os
responsáveis pela instituição impediam-na de "flertar" junto aos
portões de ferro, onde alguns rapazes ociosos burlavam a vigilância dos
zeladores em acenos galanteadores às internas.
Sônia,
outra moçoila de procedimento leviano, aliou-se Incondicionalmente à Marilda
na- tarefa inglória de contrariar os zeladores, procurando encontros furtivos à
noite.
Finalmente,
Lavínia e Morales consultaram a diretoria da instituição, solicitando
prerrogativas para agirem com mais rigor e evitarem consequências piores, pois
ambas as moças já atingíamos dezesseis anos de idade, e se mostravam
completamente contrárias à disciplina da casa.
Além
disso, tiveram de ser isoladas das outras, ante a descoberta de revistas
galantes e perniciosas, que elas contrabandeavam de fora . Apesar da mais
severa vigilância e do segregamento disciplinador, amarga notícia: Marilda estava grávida!
Morales
e Lavínia, feridos no zelo e devotamento às internas, não puderam esconder a dor
e frustração incalculável pelo fracasso na função educativa de menores. Qual
seriam os motivos
daquele evento e da ingratidão de Marilda, sempre tratada com carinho e submetida
somente a corretivos suaves, malgrado suas frequentes rebeldias? O autor da desgraça
de Marilda fora o próprio condutor de ônibus da instituição, que arrependido assumiu
plena responsabilidade do ato e o casamento foi realizado na própria "Casa
Madalena".
Lavínia
e Morales não conseguiam livrar-se do ressentimento que lhes feria o espírito amargurado.
Dali por diante, ambos modificaram o tratamento habitual para as demais moças, e
passaram a agir com o máximo rigor e vigilância, alegando terem sido advertidos
severamente quanto ao futuro. Restringiram os divertimentos, excursões e
passeios tão comuns. Tornaram-se sisudos e bruscos, alegando que Marilda
prevalecera-se do excesso de carinho e condescendência deles para agir de modo
ignóbil. As moças tinham de se recolher mais cedo e as visitas, afora de
parentes, foram praticamente proibidas. As imprudentes que se aproximassem dos
portões de ferro, seriam imediatamente reclusas e proibidas de assistir
televisão.
Quando
Sônia foi denunciada como a principal alcoviteira de Marilda, caiu-lhe em cima toda
mágoa e desforra de Lavinha e Morales. Dali por diante ela foi seguida em todos
os passos, e vigiavam-na minuto a minuto, vasculhando lhe todos os armários, as
bolsas e rouparia, à cata de revistas censuráveis ou bilhetes de namoricos. Sob
qualquer pretexto segregavam-na de todo divertimento. Sônia era moça astuta e
dissimulada. Seu espírito matreiro encouraçava-se numa silenciosa ofensiva
contra os zeladores, e pouco se preocupava com as ameaças de expulsão, se
tentasse qualquer ligação com o exterior. Ela aceitava tranquilamente as
reprimendas antecipadas por aquilo que "poderia fazer" de errado, mas
seus olhos não escondiam o sarcasmo e a desforra arquitetada dia a dia no âmago
da alma.
Certa
manhã fria e chuvosa, Lavínia e Morales foram surpreendidos com a chocante notícia;
Sônia fugira alta noite, com um jovem aprendiz de carpintaria, auxliada por
diversas companheiras ocultas sob anonimato. Porém, o pior viera depois: o
sedutor era casado!
Lavínia
e Morales ameaçaram de castigo severo todas as internas, até serem denunciadas
as alcoviteiras de Sônia. Contudo ninguém fez qualquer denúncia, mas os
zeladores perceberam nos olhos e nos gestos das moças a zombaria e a desforra.
Passaram a irritá-los dali por diante e o ambiente cordial foi substituído pelo
temor e a tristeza tomou conta do ar.
Transcorrido
pouco mais de um ano, os responsáveis pela instituição sofreram novo e duro
golpe. Marilda e Sônia, portadoras de um mesmo temperamento indócil e
irresponsável, tornaram-se amigas inseparáveis no mundo profano e profundamente
desajustadas e inexperientes para enfrentar a responsabilidade e as lutas de um
lar pobre, revoltaram-se contra a vida conjugal, e sob o espanto dos vizinhos,
um dia mudaram-se para o mais baixo meretrício da cidade!
Lavínia
e Morales, que haviam se mostrado recuperados de sua amargura e ressentimentos
anteriores, desta vez quebrantaram-se completamente frustrados. O destino inglório
das moças pesava-lhes nos ombros para sempre. Não podiam compreender os motivos
daquela decisão condenável, após tanto carinho, instrução e mesa farta proporcionados
na "Casa Madalena". Ademais, sabia-se que os companheiros de Sônia e
Marilda, embora modestos operários, viviam contentes e sustentavam razoavelmente
a casa, felizes com o primeiro filho. Não podiam explicar os motivos daquela
queda moral e espiritual das moças.
Onde
o equívoco de Lavínia e Morales? Onde as falhas da instituição no amparo às meninas
sem lar?
Dali
a dias, alegando a inutilidade do amor e do bem às criaturas imperfeitas e de
má fé, Morales demitiu-se em sinal de protesto ao seu amor próprio ferido!
A
diretoria da "Casa Madalena" mostrava-se bastante hesitante, no
tocante à responsabilidade, temendo a falência dos esforços caritativos para o
futuro de renovação espiritual das internas e integração à sociedade. Conviria
prosseguir na obra? A implacabilidade da Lei Cármica parecia negar
propositadamente o lar amigo a essas criaturas desamparadas. Sônia e Marilda
podiam ser uma caso excepcional de meninas de mau caráter e que se haviam unido
através da afinidade de sentimentos censuráveis. Como distinguir, futuramente,
quais seriam as órfãs de "bom" ou "mau" caráter acolhidas
pela instituição?
Entre
63 abrigadas, quantas Marildas e Sônias ainda existiam em potencial e capazes
de repetir a façanha deplorável?
Sem
dúvida, era profundamente doloroso comprovar-se que os sacrifícios, as preocupações
e o ideal esposados pelos espíritas no advento benfeitor da "Casa
Madalena", terminassem num fracasso inglório! Duas sementes vivas,
plantadas ali naquele jardim submetido ao melhor adubo para a alma, transformaram-se
em frutos apodrecidos na maturidade. Entre as primeiras jovens chegadas à idade
adulta, depois de acariciadas e educadas
sob os preceitos espirituais sadios, elas haviam optado pelo prostíbulo,
negando os preceitos aprendidos. Após comovente reunião dos diretores, ficou
resolvido de se consultar a entidade Abelardo, mentor da casa e sempre atencioso
em auxiliar na solução de problemas de ordem espiritual.
Em
noite tranquila, com a presença de Lavínia e de todos os componentes da instituição,
fez-se a reunião destinada a ouvir as considerações do Alto. Feita a leitura do
Evangelho, capítulo "Buscai e Achareis" (Mateus, VII vs. 7 e 11),
Abelardo pôs-se à disposição
dos companheiros encarnados, atuando através de Agostinho, médium de bom quilate
espiritual. Lavínia, mulher decidida e acostumada ao mando, mal podendo conter
a tortura que lhe ia na alma, indagou, logo, de modo intempestivo:
—
Irmão Abelardo; creio que conheceis os motivos desta reunião mediúnica, pois fomos
seriamente abalados em nossos labores assistenciais na "Casa Madalena",
onde abrigamos dezenas de meninas órfãs. O nosso carinho, desinteresse e
abnegação tributados às internas, talvez as forças maléficas interferiram para
subverter os objetivos benfeitores e cristãos...
Do
Livro: “SEMEANDO E COLHENDO” Atanagildo/Hercílio Maes – Editora do
Conhecimento.
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