quarta-feira, 19 de fevereiro de 2014

ASSIM ESTAVA ESCRITO – 1ª Parte




Eram duas horas da madrugada. A noite estava quente e abafadiça. As mariposas e os besouros dançavam alvoroçados ao redor das lâmpadas elétricas da praça. Os bancos estavam vazios e ouvia-se os grunhidos de algum bêbedo tentando encontrar o rumo de casa. Às vezes, o silêncio da noite era quebrado repentinamente pelo barulho dos carros de padeiros fazendo bulha nas pedras da rua, ou pelo latido de algum cão notívago. Ali, junto ao meio fio, estacionavam dois automóveis de aluguel. Os choferes dormiam, esparramados sobre os assentos e gozando de rápido sono, enquanto não lhes apareciam fregueses.
Das sombras saiu um vulto de mulher pequena que, em movimentos rápidos, esgueirou-se por trás de um renque de cedros e pequenos arbustos da praça; atenta à qualquer movimento exterior, ela evitava mostrar-se à luz das lâmpadas. Movia-se aos pulinhos, como os pássaros; surgia, de relance, recortando o seu vulto na claridade difusa e depois era sumida pelas sebes e pelos arbustos compactos. Súbito, parou, indecisa. Orientou-se no meio da escuridão, aproximou-se .com passos cuidadosos, perto dos automóveis estacionados. Cautelosamente ela se certificou de que os choferes dormiam. Em seguida, tomou de um embrulho, e, num gesto furtivo e rápido, que mal lhe desenhou a silhueta sob a réstia de luz, largou-o sobre o coletor de lixo, junto ao banco de cimento e sumiu-se definitivamente tragada pela escuridão. Tudo continuou quieto como se nada tivesse acontecido; mas a quietude logo foi quebrada por uma voz masculina e vigorosa:
— Olá, Waldemar! Acorda, homem! — O passageiro bateu fortemente no vidro da porta do automóvel. O chofer' acordou-se, sonolento, esticou os braços num movimento de aliviar a tensão do corpo e deu conta do que acontecia. Abriu, rápido, a porta do veículo para o freguês notívago. Neste instante, ambos ouviram, ali perto, um choro abafado, que os fez mover a cabeça, num gesto unânime de surpresa em direção ao coletor de lixo.
— Ué! — interveio o passageiro, desistindo de entrar no automóvel. — Ali há coisa!
O chofer saiu do carro, rodeou-o, curvando-se sobre o embrulho deixado pela mulher misteriosa no coletor de lixo. Livre dos panos que o oprimiam, o recém nascido entrou num choro convulso e interminável.
— Ora; mais essa? — exclamou o chofer, perplexo, erguendo o boné e coçando o cimo da cabeça. Caminhou para o outro veículo e bateu forte na porta, arrancando o colega do sono gostoso:
— Armando! ... Armando! Acorda, homem! Temos coisa por aqui!
— E quando o companheiro achegou-se, ainda esfregando os olhos e mal acordado, mostrou-lhe o bebê a berrar sobre o banco de cimento, e mofou, num tom chocarreiro:
— Olha aí teu filho, homem! Eu bem que desconfiava!
— O que?! — exclamou o outro, atarantado, enquanto o passageiro ria alto e considerava depois:
— É um ser humano, não é? Acho que devemos levá-lo à Polícia, para ela dar um jeito! — E num gesto familiar. —A não ser que um de vocês queira adotá-lo!
— Eu?! — fez o segundo chofer. — Mal dou conta das minhas cinco bocas em casa!
— Quanta a mim sou solteiro. Não tenho jeito para ama-seca! — desculpou-se o primeiro.
Na "Delegacia de Ordem Social", o suplente da noite tirou uma baforada de fumo do cigarro, e sem qualquer emotividade, considerou:
— Naturalmente isso é de alguma vagabunda. Elas enchem a barriga e chutam o filho para os outros criarem! Isso é muito comum. Essa teve algum remorso ou escrúpulo, pois se renegou o filho não o matou. E depois de uma pausa, coçando a cabeça, aventou uma solução:
— Não podemos obrigar uma sem-vergonha a criar os filhos. Quanto a isso nada posso fazer, nem abrir um inquérito ou qualquer punição. Talvez esse diabo aí esteja com fome. Não para de berrar. Olhe, vou dar a vocês uma recomendação para gente minha conhecida, e que já tem me "quebrado uns galhos" como este! — E apontando o enjeitado, indagou. —É menino ou menina?
— Menina! — redarguiu o chofer.
O suplente sentou-se, puxou da caneta e redigiu um rápido bilhete, entregando aos choferes:
— Levem isso à "Casa Madalena", dos espíritas, e digam à dona Lavínia para recolher essa enjeitada até amanhã. Mais tarde, eu passo por lá e darei uma solução definitiva. Contem como a acharam numa lata de lixo!

A "Casa Madalena" era um edifício novo, amplo e de estilo moderno. Fruto de doações generosas dos espíritas e destinada exclusivamente ao amparo das meninas órfãs e enjeitadas, podia abrigar cinquenta crianças. Entretanto, ali se internavam 65 meninas.
Malgrado as alegações justas de dona Lavínia, mulher laboriosa e responsável pela vida cotidiana da instituição, ela se viu obrigada 'a aceitar a menina, para não a deixar ao relento e também atender ao suplente amigo e cooperador da casa.
Marilda, assim escolheram o nome para a enjeitada, cresceu entre as demais meninas, quase todas da mesma idade, pois a "Casa Madalena" fora fundada há pouco tempo e amparava a primeira leva de órfãs abandonadas. Apesar dos subsídios precários do governo, sempre de má vontade, para com as instituições espíritas benfeitoras, e bastante atencioso e pródigo para as realizações do Clero Católico, que lhe dá o apoio político, foi possível terminar a obra filantrópica, graças aos donativos pródigos de alguns confrades magnânimos.
Felizmente, a instituição possuía todas as condições necessárias para proporcionar às abrigadas o conforto e o amparo desejável.
A casa erguia-se no centro de florido jardim emoldurado por delicado tapete de grama esverdescente, verdadeiro veludo vegetal. As roseiras, em grupos isolados, estavam pensas de flores e coloriam o ambiente de matizes "bordeaux", gema de ovo, branco, rosa quase lilás e um vermelho tijolo. Circundava todo o edifício uma espaçosa varanda onde as meninas bordavam, estudavam ou palestravam acomodadas em confortáveis poltronas e espreguiçadeiras. Aos domingos ensolarados conduzidas pelo ônibus da própria instituição, elas desciam à praia ou se rejubilavam em excursões aos lugares mais pitorescos. A "Casa Madalena" lutava com falta de mentores adequados para o seu generoso labor, como sói acontecer à maioria das instituições espíritas. Lavínia, mulher abnegada e seu Morales, espírita da velha guarda e bom caráter, mal podiam atender às necessidades físicas das internadas, em número superior ao que fora previsto no programa filantrópico. Não lhes sobejava tempo suficiente para cuidarem dos problemas emotivos e de esclarecimento espiritual; tudo era feito às pressas e ambos se davam por felizes quando, à noite, podiam orar convictos de haverem cumprido o seu dever.
Sem dúvida, a magnanimidade dos espíritas havia contribuído para oferecer o bom e o melhor às enjeitadas pelo mundo. A cozinha era até luxuosa com o chão de mosaico sempre lustroso. As mesas de imbuia lavrada e tampos de mármore polido. Os fogões a gás, sempre luzidos e limpos, decorados com panelas de pressão cintilantes. Os talheres de alpaca e os pratos de porcelana fina garantiam a higiene desejável na alimentação coletiva. As próprias cadeiras estofadas de gobelim, proporcionavam agradável conforto durante às refeições. Os quartos eram limpos e claros, acortinados de veludo e seda, em harmonia com os leitos guarnecidos de colchões de molas, cobertos de lençóis alvíssimos e colchas rendilhadas sob os macios travesseiros de espuma. Pequeninos tapetes com delicados desenhos floridos, preservavam as meninas de um contato desagradável com o assoalho gélido nos meses de inverno.
Sob a direção inteligente dos diretores da "Casa Madalena", não se despersonalizava as internas, coisa comum em instituições semelhantes. As meninas trajavam de modo diferente, entre si, demonstrando o gosto individual até no corte do cabelo. Quando saíam à rua moviam-se jubilosas, em grupos afins, rindo venturosas. Não manifestavam aquele aspecto de rebanho de outras organizações religiosas ou de assistência pública, que passam pelas ruas em compridas procissões, na fusão descolorida do mesmo uniforme, sapatos, meias, gorros e tipo de cabelos. Os próprios quartos eram diferentes e permitiam um certo toque pessoal; variavam o estilo do abajur, o colorido dos tapetes e o bordado das colchas! Os salões eram amplos e bem decorados em estilo moderno. O principal divertimento era o rádio, mas alguns anos depois a direção conseguira um aparelho de cinematografia projetando filmes como distração. Últimamente, elas haviam sido presenteadas com excelente aparelho de televisão.
Marilda crescia neste ambiente amigo, confortável e prazenteiro. Entretanto, não demorou a mostrar o temperamento obstinado, rebelde e desobediente, sempre inconformada com a disciplina e as obrigações cotodianas. Dona Lavínia viu-se obrigada a lhe fazer severas advertências, além das admoestações de "seu" Morales, homem brusco, incisivo, justo e coerente.
Malgrado as concessões afetivas e tratamento amistoso, e até ameaças de reclusão, Marilda transformava-se dia a dia num problema sério e espinhoso para a "Casa Madalena", porque o seu mau comportamento também semeava exemplos nocivos. Ela desfazia, irritada, todo o bem que lhe proporcionavam, caso não lhe permitissem agir discricionariamente.
Mal iniciou a puberdade, ela se punha de rosto sombrio e amuada, quando os responsáveis pela instituição impediam-na de "flertar" junto aos portões de ferro, onde alguns rapazes ociosos burlavam a vigilância dos zeladores em acenos galanteadores às internas.
Sônia, outra moçoila de procedimento leviano, aliou-se Incondicionalmente à Marilda na- tarefa inglória de contrariar os zeladores, procurando encontros furtivos à noite.
Finalmente, Lavínia e Morales consultaram a diretoria da instituição, solicitando prerrogativas para agirem com mais rigor e evitarem consequências piores, pois ambas as moças já atingíamos dezesseis anos de idade, e se mostravam completamente contrárias à disciplina da casa.
Além disso, tiveram de ser isoladas das outras, ante a descoberta de revistas galantes e perniciosas, que elas contrabandeavam de fora . Apesar da mais severa vigilância e do segregamento disciplinador,   amarga notícia: Marilda estava grávida!
Morales e Lavínia, feridos no zelo e devotamento às internas, não puderam esconder a dor e frustração incalculável pelo fracasso na função educativa de menores. Qual seriam os motivos daquele evento e da ingratidão de Marilda, sempre tratada com carinho e submetida somente a corretivos suaves, malgrado suas frequentes rebeldias? O autor da desgraça de Marilda fora o próprio condutor de ônibus da instituição, que arrependido assumiu plena responsabilidade do ato e o casamento foi realizado na própria "Casa Madalena".
Lavínia e Morales não conseguiam livrar-se do ressentimento que lhes feria o espírito amargurado. Dali por diante, ambos modificaram o tratamento habitual para as demais moças, e passaram a agir com o máximo rigor e vigilância, alegando terem sido advertidos severamente quanto ao futuro. Restringiram os divertimentos, excursões e passeios tão comuns. Tornaram-se sisudos e bruscos, alegando que Marilda prevalecera-se do excesso de carinho e condescendência deles para agir de modo ignóbil. As moças tinham de se recolher mais cedo e as visitas, afora de parentes, foram praticamente proibidas. As imprudentes que se aproximassem dos portões de ferro, seriam imediatamente reclusas e proibidas de assistir televisão.
Quando Sônia foi denunciada como a principal alcoviteira de Marilda, caiu-lhe em cima toda mágoa e desforra de Lavinha e Morales. Dali por diante ela foi seguida em todos os passos, e vigiavam-na minuto a minuto, vasculhando lhe todos os armários, as bolsas e rouparia, à cata de revistas censuráveis ou bilhetes de namoricos. Sob qualquer pretexto segregavam-na de todo divertimento. Sônia era moça astuta e dissimulada. Seu espírito matreiro encouraçava-se numa silenciosa ofensiva contra os zeladores, e pouco se preocupava com as ameaças de expulsão, se tentasse qualquer ligação com o exterior. Ela aceitava tranquilamente as reprimendas antecipadas por aquilo que "poderia fazer" de errado, mas seus olhos não escondiam o sarcasmo e a desforra arquitetada dia a dia no âmago da alma.
Certa manhã fria e chuvosa, Lavínia e Morales foram surpreendidos com a chocante notícia; Sônia fugira alta noite, com um jovem aprendiz de carpintaria, auxliada por diversas companheiras ocultas sob anonimato. Porém, o pior viera depois: o sedutor era casado!
Lavínia e Morales ameaçaram de castigo severo todas as internas, até serem denunciadas as alcoviteiras de Sônia. Contudo ninguém fez qualquer denúncia, mas os zeladores perceberam nos olhos e nos gestos das moças a zombaria e a desforra. Passaram a irritá-los dali por diante e o ambiente cordial foi substituído pelo temor e a tristeza tomou conta do ar.
Transcorrido pouco mais de um ano, os responsáveis pela instituição sofreram novo e duro golpe. Marilda e Sônia, portadoras de um mesmo temperamento indócil e irresponsável, tornaram-se amigas inseparáveis no mundo profano e profundamente desajustadas e inexperientes para enfrentar a responsabilidade e as lutas de um lar pobre, revoltaram-se contra a vida conjugal, e sob o espanto dos vizinhos, um dia mudaram-se para o mais baixo meretrício da cidade!
Lavínia e Morales, que haviam se mostrado recuperados de sua amargura e ressentimentos anteriores, desta vez quebrantaram-se completamente frustrados. O destino inglório das moças pesava-lhes nos ombros para sempre. Não podiam compreender os motivos daquela decisão condenável, após tanto carinho, instrução e mesa farta proporcionados na "Casa Madalena". Ademais, sabia-se que os companheiros de Sônia e Marilda, embora modestos operários, viviam contentes e sustentavam razoavelmente a casa, felizes com o primeiro filho. Não podiam explicar os motivos daquela queda moral e espiritual das moças.
Onde o equívoco de Lavínia e Morales? Onde as falhas da instituição no amparo às meninas sem lar?
Dali a dias, alegando a inutilidade do amor e do bem às criaturas imperfeitas e de má fé, Morales demitiu-se em sinal de protesto ao seu amor próprio ferido!
A diretoria da "Casa Madalena" mostrava-se bastante hesitante, no tocante à responsabilidade, temendo a falência dos esforços caritativos para o futuro de renovação espiritual das internas e integração à sociedade. Conviria prosseguir na obra? A implacabilidade da Lei Cármica parecia negar propositadamente o lar amigo a essas criaturas desamparadas. Sônia e Marilda podiam ser uma caso excepcional de meninas de mau caráter e que se haviam unido através da afinidade de sentimentos censuráveis. Como distinguir, futuramente, quais seriam as órfãs de "bom" ou "mau" caráter acolhidas pela instituição?
Entre 63 abrigadas, quantas Marildas e Sônias ainda existiam em potencial e capazes de repetir a façanha deplorável?
Sem dúvida, era profundamente doloroso comprovar-se que os sacrifícios, as preocupações e o ideal esposados pelos espíritas no advento benfeitor da "Casa Madalena", terminassem num fracasso inglório! Duas sementes vivas, plantadas ali naquele jardim submetido ao melhor adubo para a alma, transformaram-se em frutos apodrecidos na maturidade. Entre as primeiras jovens chegadas à idade adulta, depois de acariciadas e educadas sob os preceitos espirituais sadios, elas haviam optado pelo prostíbulo, negando os preceitos aprendidos. Após comovente reunião dos diretores, ficou resolvido de se consultar a entidade Abelardo, mentor da casa e sempre atencioso em auxiliar na solução de problemas de ordem espiritual.
Em noite tranquila, com a presença de Lavínia e de todos os componentes da instituição, fez-se a reunião destinada a ouvir as considerações do Alto. Feita a leitura do Evangelho, capítulo "Buscai e Achareis" (Mateus, VII vs. 7 e 11), Abelardo pôs-se à disposição dos companheiros encarnados, atuando através de Agostinho, médium de bom quilate espiritual. Lavínia, mulher decidida e acostumada ao mando, mal podendo conter a tortura que lhe ia na alma, indagou, logo, de modo intempestivo:
— Irmão Abelardo; creio que conheceis os motivos desta reunião mediúnica, pois fomos seriamente abalados em nossos labores assistenciais na "Casa Madalena", onde abrigamos dezenas de meninas órfãs. O nosso carinho, desinteresse e abnegação tributados às internas, talvez as forças maléficas interferiram para subverter os objetivos benfeitores e cristãos...

Do Livro: “SEMEANDO E COLHENDO” Atanagildo/Hercílio Maes – Editora do Conhecimento.


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