...Fazendo
uma pausa, aumentando a expectativa dos presentes, Lavínia inquiriu, nervosa e
até desesperada:
— Por
que, essas meninas, Marilda e Sônia, destruíram tantos anos de afeto e benefício,
a ponto de prevaricarem como qualquer moçoila leviana criada nas favelas e cortiços,
sem afeto e sem bom trato no mundo? Qual o nosso equívoco? Qual a causa desse
fracasso?
Abelardo,
calmo e atencioso, a transparecer na fisionomia do médium um vislumbre
inteligente, respondeu:
— Meus
queridos irmãos, a própria terra depois de lavrada
não oferece exclusividade de vegetais e frutos sadios, mas também fecunda ervas
daninhas. Planta-se o trigo e o joio existente na terra nasce junto. Nem
podemos separá-los. É certo que sob o carinho, o discernimento e a perseverança
do lavrador, em breve o solo torna-se cada vez mais fértil e a messe melhor.
Obviamente, nós só podemos aguardar a segurança dos frutos sazonados, depois de
dominarmos as surpresas da plantação e ultrapassarmos o período da experimentação
sáfara. Algo semelhante também pode acontecer convosco na direção filantrópica
da "Casa Madalena", cujo terreno ainda se mostra inculto e agreste.
Talvez, faltam-vos conhecimentos psicológicos e freudianos, experiências e
métodos modernos de educação. Melhor controle emotivo e discernimento de
educadores para vos aperceber melhor da índole e das reações desses espíritos
comprometidos espiritualmente na prova cármica da orfandade bastarda.
Considerando-se a não existência da injustiça
no seio da Divindade, é evidente que essas
criaturas atiradas em portas de igrejas ou latas de lixo, desprezaram seus
pais, preceptores ou benfeitores noutras existências. São espíritos primários e
egoístas, presos às sensações inferiores do sexo. Se depois disso elas ainda
viessem a encarnar-se em lares pródigos, afetivos ou venturosos, então a lei de
retificação espiritual seria apenas uma fantasia. Além da assistência material
e do amparo físico tendes de desenvolver a
habilidade, a experiência e o estoicismo espiritual nessas
criaturas, a fim delas superarem os impulsos animais, as frustrações e os
óbices que inevitavelmente irão defrontar, quando forem devolvidas ao mundo
profano. Isto acontece com o lavrador; ele arranca violentamente as ervas
daninhas, fere a planta sadia na poda retificadora. Usa o inseticida mortal no
extermínio dos insetos nocivos, para obter a
planta resistente e sazonada.
— Naturalmente,
referi-vos à nossa inexperiência no programa assistencial às órfãs, não é
assim? — interveio um dos diretores da instituição. instituições espíritas
filantrópicas, no momento, defrontam com a falta de preceptores para o bom
êxito e a segurança dos programas
benfeitores. Há muitos servidores de boa vontade para atender as exigências
humanas dos deserdados da sorte, mas é bem reduzida a "equipe" de
preceptores para esclarecê-los e ensiná-los a enfrentar as vicissitudes da
vida! (1) Repito, não basta ao lavrador apenas plantar as mudas ou sementes em
bom terreno, preservá-las dos insetos daninhos, da chuva torrencial, da
aspereza das geadas ou da violência dos tufões. Embora
o solo esteja bem adubado e as espécies bem amparadas, é
preciso podar as vergônteas nocivas no "tempo
certo" e quando tenras, dando condições ao vegetal para sobreviver
naturalmente.
E
Abelardo arrematou o esclarecimento numa voz conciliadora e cordial: — Assim
como a "qualidade" da muda da laranjeira superior deve predominar sobre
a rudeza violenta da laranjeira brava, apesar de presa ao "caule selvagem",
a qualidade superior do espírito humano também precisa sobrepujar a "tendência"
inferior do instinto animal da carne!
— E
que deveríamos fazer, caro irmão Abelardo, se depois de mobilizarmos esforços,
capacidade, recursos e inteligência para melhor solução de nossos problemas assistenciais,
ainda fracassamos pela imprevisão? — solicitou o presidente da mesa.
— Trabalhar
e prosseguir! Cada fracasso, inexperiência, imprevisão e prejuízo, significam
novas advertências e ensinamentos para o êxito futuro. O mundo em que viveis também
não é perfeito e está cheio de desilusões; mas o Pai continua a trabalhar para
o nosso eterno Bem!
— Não
seria mais coerente deixarmos os "enjeitados" cumprirem o carma sob a
espontaneidade própria da vida? Que podemos fazer, perante à Lei Espiritual,
que os obriga a sofrerem os efeitos das atividades nocivas do passado?
— Em
primeiro lugar, ao fazermos o bem ao próximo só estamos "fazendo aos outros",
exatamente, o nosso próprio bem. Amar é evoluir. Ademais, se essas almas forem
lançadas desde cedo a uma vida sem lar e sem rumo, embora meninas impúberes,
elas serão transformadas em matéria prima carnal para a exploração prazenteira
de criaturas inescrupulosas e perversas, que as prostituiriam desde crianças,
não lhes dando oportunidade de redenção. A infelicidade a começar de tenra
infância, aumenta-lhes a revolta contra o Criador. A cooperação amorosa e benfeitora
de mulheres e homens, como Lavínia e Morales, no ambiente sadio de instituições
socorristas, proporciona-lhes agasalho, alimentação farta, diversão e amizades,
e se mesmo assim se restituírem pela força das paixões inferiores, elas jamais
poderão esquecer o bem recebido. Mas se forem atiradas desde cedo no mundo, não
ficam devendo obrigações à humanidade. Mas não esqueçamos que o Pai procura
redimir pelo amor e não pela dor, pois esta é solução drástica quando falham todas
as inspirações superiores! Sob o acolhimento de instituições benfeitoras, não
poderão odiar o mundo que lhe é benfeitor desde os seus primeiros dias de vida.
Abelardo
cessou de falar, como era de seu costume, antes de emitir qualquer conceito final
às suas explanações:
— Em
verdade, queridos irmãos — prosseguiu ele, depois, ninguém odeia em sã
consciência o bem recebido, mas sempre há de se arrepender dos benefícios que
destruir pela própria maldade. Marilda • e Sônia devem odiar os homens que as
tornaram infelizes, porém não podem prolongar esse ódio à "Casa
Madalena", onde viveram momentos felizes, tanto na infância como na
mocidade.
— É
aconselhável prosseguirmos uma obra como "Casa Madalena", embora antevendo
certos fracassos no futuro? —interrogou o tesoureiro da instituição.
— Depende
da disposição espiritual dos irmãos, — redarguiu Abelardo.
— Gostaríamos
de ser melhor esclarecidos!
— Caso pretendam realmente
ajudar o próximo, sem qualquer preocupação de glória, lucro ou posse de algum
título no Paraíso, eu recomendo o mesmo conselho transmitido daqui por outra
entidade espiritual através de excelente médium, e que assim
recomendou:
"Ajude e Passe" (2). Deste modo, a caridade será absolutamente desinteressada
e exclusiva do Bem pelo Bem, sem indagações sobre resultados ou recompensas.
— E
os nossos sentimentos magnânimos, porventura não influíam nos deserdados pelos
quais somos responsáveis? — Lavínia. — Apesar de mobilizarmos os
mais puros sentimentos de amor e abnegação aos nossos irmãos infelizes, jamais
poderemos livrá-los da retificação espiritual pelos seus erros pregressos. O
anjo não é produto de fabricação em massa, mas conquista real e gradativa do próprio
ser. Cada um de nós terá de progredir perante o processo geral que estimula e
reajusta, impulsiona e corrige, orienta e gradua. Os espíritas, principalmente,
sabem que a Lei Sideral não se modifica nem se desvia em seu ritmo educativo
para atender privilégios e sentimentalismos humanos. "Quem semeia urzes
colhe espinhos e não morangos", pois se a "semeadura é livre a
colheita é obrigatória."
Mudando
o tom de sua prosa, Abelardo prosseguiu, novamente:
— Jamais
poderíamos olvidar a renúncia, o afeto e a ação benfeitora de todos os batalhadores
da "Casa Madalena". Meditemos, porém, sobre a natureza e a qualidade espiritual
de criaturas que não mereceram um lar. Por quê? Sob a lógica da lei cármica,
são almas atrasadas que em vidas anteriores desprezaram os pais e os lares
pelos prazeres materiais. Egoístas, levianas, sensuais, ociosas ou revoltadas,
cuidaram somente de si e fizeram da vida humana uma incessante diversão. Pagaram
todo o bem recebido com a mais fria ingratidão. Entretanto, a pedagogia espiritual
preconiza que "o espírito será beneficiado segundo suas obras" e não
conforme o "amor alheio". Embora amparadas, elas teriam de efetivar a
colheita boa ou má de sementeira pretérita. Abelardo fez nova pausa, deixando
pressentir que alinhava premissas para a sua conclusão final...
Do
Livro: “SEMEANDO E COLHENDO” Atanagildo/Hercílio Maes – Editora do
Conhecimento.
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